Iluminuras sequenciais

Bibliophage
3 min readMar 11, 2021

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(O passado e o futuro através de STGM, de Valin Mattheis)

“Estava numa Tipografia no Inferno, & vi o método pelo qual o conhecimento é transmitido de geração em geração.”

(Uma visão memorável, William Blake)

O surgimento de uma nova forma de construção narrativa, com sua peculiar configuração de todo o universo dentro da possibilidade de desenvolvimento de suas — ou da sua — trama, demonstram um esforço espantoso em criar uma totalidade em suas tendências para a entropia fazer sentido. Nesse processo, muitas tentativas e ensaios são realizados — poucos são reaproveitados, de fato. A maioria torna-se uma curiosidade, o rodapé de uma história possível, mas abortada. A lanterna mágica perdeu sua intensidade narrativa diante do cinema e tornou-se um instrumento funcional, professoral, o projetor de imagens fixas, slides. As possibilidades marginais ao romance mantiveram-se nos limites da indigência enquanto as estruturas em arte sequencial originais como as experiências de Gustave Verbeek foram descartadas e terminaram ocupando um local subalterno na continuidade histórica estável desse tipo de narrativa — são experiências intrigantes, momentos de êxtase na visita ao museu. Contudo, há momentos em que essa superficial pasmaceira se quebra e não apenas experimentos anteriores são resgatados, mas formas descartadas de contar uma história ganhou uma nova chance. Não se trata apenas de reviver o passado, mas de reimaginar o futuro para além de um caminho em que a normalização e a homologação estilística se torna excessiva. Um momento de rompimento com a norma e de busca de um outro futuro, utopicamente vislumbrado. Trata-se daquilo que poderíamos denominar momento Napoleão. Sem dúvida, um desses momentos singulares surge com STGM (“Sic Transit Gloria Mundi”), obra originalíssima de Valin Mattheis, publicada pelo próprio autor/artista.

O que denominamos aqui de “momento Napoleão”– e aqui aludimos a um filme, o imenso épico do cineasta francês Abel Gance, lançado em 1927 — uma clivagem singular na continuidade estilística e ideológica de uma dada formulação semiótica e narrativa. Nesse sentido, o que resgatamos com esse termo é justamente a ousadia em experimentar — como foi feito por Gance em seu filme — soluções do passado e do presente, o estabelecido e o ultrapassado, em busca de novos caminhos possíveis — não necessariamente acessíveis. A obra de Mattheis segue exatamente esse caminho, no formato único por ele escolhido para STGM — o cruzamento entre a obra gráfica e a narrativa sequencial, entre a iluminura medieval e a linguagem subjetiva do fluxo da consciência, entre a evocação do mistério ritualístico e a alucinação estilizada.

Esse estranho livro surgiu em meu caminho inadvertidamente. Em primeiro lugar, por recomendação de Forrest Aguirre, um dos mais brilhantes autores de ficção ocultista contemporâneos. Logo, descobri que, anteriormente Mattheis fizera ilustração da sobrecapa de The Varvaros Ascension, novela de tonalidade ocultista extraordinária, escrita pelo próprio Forrest Aguirre e publicada pela Mount Abraxas, de Bucareste (resenhada aqui). Pois bem, essa sobrecapa, com seus elementos míticos, era algo que chamava a atenção no livro. E essa percepção mítica é o foco central de STGM, ou como diz o subtítulo: “The Conclusion of the world and what rose after”. A narrativa é inteiramente imagética, em ilustrações que ocupam a página toda. Os textos explicativos, em cartuchos, conduzem o leitor pela floresta de símbolos que são as imagens de Mattheis — que, apesar disso, possuem um dinamismo ípar, com suas criaturas imponentes surgindo, retorcidas, pelos ares sobrecarregados de cada desenho. Nesse sentido, a estruturação da narrativa visual de Mattheis é impecável, inovadora, variada, criativa; o leitor acompanha o caos apocalíptica descrito tanto pelas imagens quanto pelo texto, enquanto tenta decifrar o fluxo de estranhos símbolos. A trama começa com uma descrição geral da catástrofe que acomete o planeta, mas logo mergulha em uma espécie de consciência narrativa vagamente individual, para cobrir as ocorrências menos gerais. Visionária, a estrutura narrativa de STGM parece desafiar as convenções usuais: nem histórias em quadrinhos, nem livro ilustrado, nem panfleto apocalíptico, talvez história do fim do mundo — mas um pouco de tudo isso.

O livro foi produzido pelo próprio autor, artesanalmente, e isso traz marcas inevitáveis no acabamento artesanal, embora a arte sofisticada de Mattheis transforme essa aura de simplicidade, aproximando o livro de um estranho artefato fora de tempo/lugar, um incunabulo produzido por impressão digital. Enfim, se essa foi a estréia de Mattheis na esfera dos livros ilustrados, só podemos esperar por portentos ainda mais ferozes no futuro.

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